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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Armadilha com ratoeira mata suposto ladrão: isso é permitido?

LUIZ FLÁVIO GOMES*

Um trabalhador da zona rural em Formosa (GO) colocou em sua casa uma armadilha feita com ratoeira e projéteis mortais. A armadilha funcionou e matou o suposto ladrão. Isso é permitido ou proibido? Na nossa opinião houve abuso, houve excesso. Houve homicídio doloso (intencional).

O tema, tecnicamente falando, nos conduz ao conceito de ofendículos. Ofendículos (ou offendicula ouoffendiculum) são os obstáculos ou meios empregados para impedir eventual ofensa a bens jurídicos (patrimônio, domicílio etc.). Exemplos: cacos de vidro sobre muros, pontas de ferros sobre portões, cão de guarda etc. Os ofendículos podem ser ativos (cão de guarda, v.g.) ou passivos. Estes envolvem também a chamada “defesa mecânica predisposta” (que são aparatos prontos para disparar quando há a abertura de uma porta ou de uma janela, v.g.).

Dentro do conceito de ofendículos ainda podemos inserir as cercas elétricas (que, em regra, são autorizadas por leis municipais, a partir de uma certa altura). Câmera de vídeo não é um ofendículo porque não visa a impedir eventual ofensa ao bem jurídico, mas sim a comprovar essa ofensa. Já o alarme (constituindo um obstáculo) é um ofendículo.

Quando a colocação e o seu funcionamento são regulares (sem excesso, sem abuso, proporcional, moderado, equilibrado) não existe criação de risco proibido, logo, fica desde logo excluída a tipicidade material (e o crime). Na colocação regular não há desvalor da conduta nem do resultado (proporcional). Não há crime.

Cuida-se de atividade que exterioriza riscos permitidos (enquanto haja moderação na colocação e no uso). A eletrificação de uma cerca configura, em princípio, risco autorizado (aliás, muitos municípios disciplinam essa matéria expressamente). Até aqui, nenhuma ponderação de bens é exigida. O dono da casa tem direito de eletrificar a sua cerca, ainda que isso represente riscos para terceiras pessoas. Quem cria riscos permitidos não comete crime (de perigo para vida ou saúde alheias). Não há desaprovação da conduta (quando ela gera risco permitido).

Natureza jurídica dos ofendículos:existe divergência doutrinária sobre a natureza jurídica dos ofendículos. Alguns sustentam que seria legítima defesa predisposta ou preordenada. Para nós a colocação dos ofendículos deve ser regida pelo instituto do exercício regular de um direito. Seu eventual funcionamento ingressa no terreno da antijuridicidade.

A colocação dos ofendículos, desde que dentro dos limites legais e razoáveis, constitui exercício regular de direito (excludente da tipicidade material). Quando tais ofendículos funcionam concretamente, resta ao juiz examinar se o exercício do direito foi ou não regular. Se foi regular, não há tipicidade material (não há criação de risco proibido); se foi irregular (abusiva, excessiva) há tipicidade material. Só então passa a analisar a questão da antijuridicidade.

Uma coisa nos parece certa: não pode nunca haver excesso (desproporcionalidade): uma cerca elétrica colocada de modo irregular não pode chegar ao extremo de matar uma pessoa para a pura e simples defesa do patrimônio (pode-se dizer a mesma coisa da defesa mecânica predisposta excessiva).

Recorde-se: para salvar o bem jurídico patrimônio não podemos sacrificar uma vida. A desproporcionalidade é patente. A falta de moderação é evidente. De qualquer modo,se a cerca elétrica ou a defesa mecânica foi colocada regularmente, sem excesso, não há criação de risco proibido. Mesmo que uma criança venha a falecer quando pretendia superá-la, não há tipicidade material. Não há risco proibido.

A questão fica complicada quando há excesso: alta potência não permitida, “armadilha mortal feita com ratoeira” (esse é o caso do trabalhador rural de Formosa-GO, que predispôs a armadilha e matou um suposto ladrão, com dois projéteis no peito, em julho de 2011) etc..

Se a colocação ou predisposição foi irregular (abusiva, excessiva), três situações possíveis: (a) resultado moderado; (b) resultado justificado e (c) resultado desproporcional (excessivo).

Nesse caso há a criação de risco proibido. Logo, existe tipicidade material. Só resta examinar a questão da antijuridicidade (proporcionalidade entre o ataque e a reação, entre o bem jurídico protegido e o ofendido etc.).

Primeira situação: se a cerca irregular ou a defesa mecânica predisposta excessiva gera um resultado moderado (uma lesão, um ferimento, um pequeno choque etc.), estamos diante de um resultado não exagerado, não desproporcional. O meio era excessivo, mas o uso foi moderado. Legítima defesa indiscutível. Está excluída a antijuridicidade.

Segunda situação: se o aparato predisposto (o ofendículo) mata justamente quem anunciou previamente que queria pular o muro da casa para estuprar a esposa e/ou matar o marido, nesse caso há legítima defesa (pela natureza dos bens jurídicos envolvidos). Fala-se aqui em legítima defesa preordenada ou predisposta. Fica excluída a antijurididicade. Resultado justificado.

Terceira situação: e se o ofendículo atinge uma criança inocente, que apenas pretendia alcançar sua bola? Foi gerado um resultado desproporcional. Tendo havido colocação excessiva (no princípio), o fato é materialmente típico e antijurídico. Sempre que o resultado seja previsível e haja concorrido dolo ou imprudência (isto é, se o sujeito criou um risco proibido), responde por crime doloso ou culposo. Se tinha mesmo a intenção de matar determinada vítima, crime doloso. Se não tinha a intenção de matar ninguém, mas concorreu com culpa, homicídio culposo.

*LFG – Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

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