O fato abaixo é verídico e as testemunhas todas cristãs.
Tenho por hábito efetuar meus trabalhos de produção de textos no silêncio da noite. Divido assim meu dia em três etapas: uma primeira, matutina, onde me atualizo com as novidades do direito e assuntos de interesse, vejo a agenda do dia e publico nas minhas redes sociais. A segunda parte, a vespertina, atendo clientes e faço minhas idas ao fórum e outros locais. Ultimo o dia com uma sessão de desenhos animados e retorno ao escritório para o verdadeiro trabalho do dia: a produção intelectual onde todos os assuntos tratados vão se tornar arrazoados para serem distribuídos nas competentes repartições.
No final de um dia destes pode-se afirmar que retorno para casa bastante cansado. Milhões de coisas passam por minha cabeça. Não é incomum verem-me gesticulando e falando sozinho pelas ruas como quem está arrazoando num tribunal. É que as coisas não saem da minha mente e as fico repensando a todo instante.
Mas passo em frente ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade e, mesmo sendo ele fechado as 21 horas, olho para seu majestoso edifício de arquitetura ímpar e, sentindo as boas energias que dali fluem, chego em casa com as forças reabastecidas para o meu merecido sono. Por morar muito próximo de meu escritório a caminhada não dura mais que 3 minutos. E por faze-la todos os dias o caminho é percorrido sem que eu me dê conta de muitas outras coisas no seu percurso.
Mas outro dia, aproximando-se do Santuário, ouvi gritos e gemidos (que pareciam femininos) clamando por socorro. Estas lamuriosas vozes tendiam já querer apagarem-se. Pareciam vir do Santuário! Não sou medroso ou tenho crença que santos aparecem a pecadores como eu. Mas naquele momento senti que algo estranho estava para acontecer.
Voltando-me na direção do refúgio espiritual, já sem luzes algumas no seu interior, notei que dali vinham as vozes. Pronto! Estava eu eleito para um contato direto com a divindade. Qual seria? Nossa Senhora? Sagrado Coração de Jesus (já que existe uma imagem sua em frente o Santuário)? Ou seria meu estimadíssimo Pe. Hugo, a quem recorro para que interceda por mim nos momentos que falta inteligência? Seria um santo desconhecido? Alguma pessoa que ali falecera? Que alma queria contato com este pobre miserável?
A igreja é frontalmente protegida por enormes grades. Nunca imaginaríamos que um local sagrado deveria ser protegido por lanças de três metros de altura. São coisas do tempo moderno. No meio, está o Santuário ladeado por outras duas entradas igualmente lacradas pelas lanças estilo romanas. A da direita franqueia acesso a centros de estudos e salas de reunião; a esquerda, ao espaço reservado para adoração ao Santíssimo Sacramento. E era desta segunda entrada que distancia-se dos gradis principais por uns 10 metros que as vozes clamavam a salvação dizendo “socorro!”, dizendo “liberte-nos!”.
Dois vultos que identifiquei tratarem-se femininos somente pela voz. Suas roupas escuras, rostos brancos cobertos por longos cabelos. Não tive dúvidas: são almas penadas. Daquelas que carregam culpas e pecados e não conseguiram libertar-se deste mundo material. Precisam de mim! De mim!?!?
Separados pelas grades que estão imediatamente próximas a rua e pelas outras grades que, após o jardim, ladeiam o prédio do Santuário, estávamos distantes e eu somente via aquelas “almas aflitas” pedindo a libertação daquele Santuário que as fazia refém.
A cena não me pareceu estranha. Eu já a presenciei noutros palcos, mas ali era a primeira vez. Como advogado criminalista tenho o costume de ficar do lado de fora das grades conversando com pessoas que, do outro lado pedem socorro. Mas geralmente o teatro é diferente: geralmente estou numa penitenciária ou nalguns destes cadeiões remanescentes dos tempos de claustros e das masmorras onde se amontoavam presos. Mas duma igreja, confesso ter sido a primeira vez que recebo pedidos de liberdade.
Sem temor, voltei-me para o lado de onde vinham as lamuriosas vozes e questionei o que se passava. Se acaso as almas dissessem querer liberdade eu diria que aquele local é o de liberdade e salvação de almas e que aguardassem a missa matutina para pedirem perdão e dali mesmo tomarem o rumo que o Julgamento Final as desse.
Mas a resposta a meu questionamento foi outra. Não eram almas, não eram bandidos. Pobre beata e sua jovem companheira estavam ali tolhidas de sair por haverem rezado demais! Assim explicaram-me que descuidando-se na ladainha, não perceberam o homem que tem as chaves da igreja (e que não é São Pedro) tinha selado todos os umbrais e as deixado ali penitentes.
Penitentes em penitenciária sagrada.
Não deixei de rir do inusitado e providenciei a chamada do porteiro da igreja (que não é São Pedro) e fiquei ali fazendo companhia a ambas trocando dedos de proza para amainar seus sofrimento de reclusas.
Mas descuidei-me que apenas eu as via, e a rua central da minha pequena cidade ainda era palco de movimento de vários transeuntes.
E o que estes passantes da noite viam? Um advogado, conhecido na cidade, agarrado a uma grade de igreja conversando com além. Já que não viam as incautas beatas que já não mais bradavam a liberdade.
O panorama de fato não estava muito a favor de minha sanidade mental. A conversa entre eu e as senhoras transcorria animada e eu, apoiado na grade frontal do Santuário, ria e lhes respondia nos casos que foram de desenrolando enquanto esperávamos as chaves (que não viriam de São Pedro).
Os passantes da rua deveras preocupados: uns com o desconhecido que lançava palavras ao vento direcionadas ao interior da capela do Santíssimo Sacramento; outros conhecidos deste causídico, preocupados com a entrega de seus processos a um desatinado que orava altas horas da noite abraçado a um gradil, como quem estava de boa proza com o além, quiçá com Padre Hugo que foi pároco por mais de 40 anos naquele Santuário, que já é falecido há vários anos; outros confidenciaram-me que tinham a certeza que estava eu fazendo um habeas spiritus já que habeas corpus se dá nos balcões forenses e é destinado aos vivos!
Não demorou muito um afetuoso amigo aproxima-se com ares de preocupação pelo louco que estava em sintonia com a divindade do Santíssimo Sacramento, mas não em oração, e sim em amistoso bate-papo, questionando-me sobre o que estava ocorrendo. Concomitantemente aproxima-se o responsável pelas chaves da igreja (que não era São Pedro) e o mistério se desfaz.
Após risos e gargalhadas das beatas presas, deste que falava aos espíritos, do guardador das chaves, dos transeuntes assustados com a cena, os portões que defendem o sacrossanto local novamente foram trancados aos vivos, e fomos para casa.
Beatas descobrindo o verdadeiro significado de “penitenciaria”: local de penitência.
Eu fazendo meu primeiro habeas spiritus.
Os demais passantes afirmando a minha sanidade.
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