Ler é hábito que tenho desde a mais tenra infância.
A primeira alegria literária que tive foi quando muito jovem, meus pais compraram a Enciclopédia Barsa. Nossa! Lia desvairadamente aqueles volumes tal qual um guloso e ainda faminto a frente de um prato saboroso. Depois, as obrigações logo me chamaram na voz grave de meu pai: ao trabalho. E lá estava eu aos 9 anos entregando pastéis e pães de queijo nas ruas de Pará de Minas. Depois, aos 14 foi ora de aprender o ofício paterno: ser barbeiro. Mas entre um corte de cabelo e outro, se foi um milhar de livros da biblioteca pública de Pará de Minas. Pena que nada disto me fez bom aluno nas salas de aula do grupo escolar ou do colégio. Foram algumas reprovações em disciplinas como matemática, física e biologia (até hoje tenho um asco indomável ante tais ciências).
Lia de tudo muito. Não me importava a qualidade. Importava antes de tudo, ler. Seja lá o que fosse, lia. Eu não entendia possível existir a má leitura. Tudo devia ser lido, ocorrendo saber que num e noutro caso aproveitaria-se menos ou descobriria uma forma mais desagradável de leitura. Mas ler era essencial. Assim sendo, li a Bíblia toda, bem como o Minha Vida de Adolf Hitler.
Mas lendo e nunca parando de ler perfiz um tortuoso caminho até o ingresso na faculdade de direito onde eu então lia o que mais me preferia: os jurídicos.
Lembro-me e não me envergonho, apesar de não recomendar a ninguém tal comportamento, quando durante o curso colegial eu cabulava (matava) aulas de física, biologia, matemática, para ir a biblioteca do colégio ler um livro comentando o artigo 121 do Código Penal. Então eu concordava com a minha consciência: é com isto que quero trabalhar. Então posso dizer que Damásio Evangelista de Jesus foi o meu pai jurídico.
Depois, atentei-me mais a literatura técnica jurídica, mas jamais abrindo mão de outros contos, romances e demais literaturas que passei a chamar de extravagantes (ou seja alheias ao mundo do Direito).
Toda esta literatura extravagante foi lida desordenadamente, não elegi um escritor ou tema para seguir. Lia na conformidade que tinha contato com a obra.
Todo exagero é punível. Todo hábito quando em excesso torna-se anormal:
Alimentar-se bem é uma coisa boa, já o excesso é a gula, abominável pecado num mundo onde a fome campeia.
Cuidar do corpo é preservar a saúde, mas o narcisismo é condenável.
As crianças merecem todo o carinho, mas o excesso beira a pedofilia!
Crer em Deus e adora-lo é bom caminho para a salvação, o exagero é a repugnante prática do fanatismo.
Que mal nos traz o excesso de leitura? Nenhum! Digo sem medo algum. Rendeu-me alguns poucos graus nos óculos.
Apenas agora tive o interesse em ler as obras chamadas da Filosofia do Direito ou Teoria como preferem outros.
Mas, para não ser diferente tal preferência surge num contexto interessante: Estava eu diante de uma pendência jurídica onde a ética era tema a ser ponderado com mais profundidade. Procurei uma literatura mais precisa e pontual sobre o tema para fundamentar meus arrazoados no processo. Então vi “Ética e Direito” de Chaïm Perelmam.
Não me ajudou em absolutamente nada, tomando em conta o problema judicial que eu tinha em mãos para resolver. Mas foi um leitura fascinante. Daí procurei seus referenciais bibliográficos e percebei vários autores de absoluto desconhecimento meu. Alguns, até uma ligeira sombra passou-me das aulas de filosofia do direito nos tempos da faculdade, mas nada que pudesse marcar meu pensamento. A final, a atual filosofia do direito, com bases em Habermas, Alexy, Dworkin e outros surgiram com mais debate e ênfase após minha graduação lá nos idos de 1997.
Desta forma declarei que a partir daquele momento leria sobre a tal Teoria do Discurso. Sabendo que seria árduo caminho, porque não iniciar relendo um texto muito interessante (argh!!!) de Kant?! Crítica da Razão Pura e Crítica da Razão Prática foram deglutidos como os pratos de sopa de jiló preparados por maus cozinheiros. Mas a descoberta do imperativo categórico foi excelente, muita vitamina para o caminho literário. O término da leitura destas duas obras foi um alívio, mas mal sabia eu que representaria apenas um degrau naquela interminável escada que ainda não percorri nem a metade. Lendo Kant percebi que ele teve um referencial bibliográfico em Hume. Então lá vamos nós para o Tratado da Natureza Humana (ufa!!). Já que comparei Kant a um prato de jiló vitaminado, Hume desce como uma sopa de pedras, mas é um sólido alicerce para o entendimento do ser humano.
E por aí foram sendo colecionadas obras sobre obras de pensadores como os até agora citados.
O princípio Universal, suas contestações, seus referendos, defesas, objeções, partidários, apartidários, meio-termos foram sendo encontrados numa e noutra obra. Já não sentia mais aquele sabor ruim no apreciar estes manjares literários. Ao contrário, sentia-me muito satisfeito em apreciar aquelas iguarias deliciosas.
Descobrir as coisas sozinho. E sem uma orientação correta é complicado. Não sabe o leitor destas linhas as dificuldades que passei e ainda enfrento neste ramo do pensamento. Note-se que li Raws antes de Habermas, e depois deste li Günther. De Alexy tinha lido apenas uma pequena obra, e não seus principais pensamentos. Descobri prestimosas contribuições de brasileiros em seus artigos, mas parece-me que tendem a manter um círculo restrito a seus parcos membros, não disponibilizando com facilidade seus textos na internet. Certo que entendo suas vontades de verem-se ressarcidos monetariamente pelos seus esforços. Mas adquirir estas obras ainda é de complexa jornada dada as pequenas editoras que assumem o risco de publicar obras tão importantes.
A busca terrivelmente árdua pela diferenciação entre justificação e aplicação nos conceitos e limites da teoria do discurso é saborosa aventura literária e uma busca cujo prazer não pode ser dispensado. Boa parte de meu exercício na advocacia e vida pessoal foram muito forte influente no meu agir.
Neste ponto um alerta: nunca jamais ‘baixei’ livros da internet. Nunca pedi livros emprestados. Sempre recorri a aquisição das obras nas livrarias prestigiando o autor. Plágio, pirata são vernáculos dos quais tenho fobia absoluta. E tenho especial orgulho de poder exibir meus livros todos marcados, apontados e de minha exclusiva propriedade, legalmente adquiridos.
Atualmente sou Professor de direito e procuro incentivar a leitura em meus diletos alunos. Mas as resistências são muitas. Um terrível mal assola nossa juventude atualmente: trocam o Professor da academia pelo professor google. É terrível quando redijo estas linhas e o revisor ortográfico pede para eu colocar a palavra google com a inicial maiúscula apontando aquele risquinho vermelho!
Sempre que inicio a disciplina, logo no primeiro dia de aula, já dou as diretrizes dos trabalhos extraclasse que terão de apresentar-me no transcorrer do semestre. Ler um texto (que nunca repito semestres consecutivos) e dele uma atividade a ser elaborada. Já pedi para reescrever Pe. Vieira (Sexagésima) com conotação jurídica; Elaborar a ação de danos morais de Bentinho e Capitulina (Dom Casmurro – Machado de Assis); Apontar o que tem de jurídico em Antígona. E por aí afora.
Urros de ódio contra a minha pessoa são emitidos. Mas sei que faço em prol do 11º período do curso de Direito que vão cursar a vida toda e dele ninguém sai nunca.