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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Um conto sobre a experiência da lei nova

Fato verídico relembrado em salutar troca de mensagens com o Professor Fábio Ataíde

Estava eu recentemente formado em direito na condição de “juiz leigo orientado por magistrado togado”, presidindo – pasmem – uma audiência junto ao Juizado Especial Criminal. Isto nos idos de 1996 quando ainda era fresquinha a lei 9.099/95. Naquela época esta lei revolucionou a processualística penal e todos festejavam a oralidade, informalidade e celeridade! Estamos em êxtase diante de tamanha inovação que tanto veio a colaborar para o desafogamento das varas comuns. Neste frenesi, até que regulamentações e orientações jurisprudenciais viessem fomos aos ‘trancos e barrancos’ colaborando com a justiça.

Pois bem! Eis que se posta a minha frente um cidadão aparentando uns 45 anos. Matuto malandro do interior de Minas: Chapéu de palha debaixo do braço, camisa aberta até quase o umbigo, cigarro de palha na orelha, moreno queimado de sol que só peão de obra das de “sol-a-sol” possui, uma fala arrastada de home bravio e destemido, vozeirão bravo e firme!

Meu tino de quem desde os 9 anos trabalha diretamente com o povo alertou-me a mente: “Ronaldo, este valentão tem história! Explore dele!”

Coloquei o processo virado sobre a mesa de forma que ele não visse de que se tratava. Pobre de mim! Pensei que ele tinha a visão e leitura tão rápidas quanto eu acostumado com as letras!

Iniciei o diálogo:

- Seu João (nome fictício), a justiça sabe o que o senhor anda aprontando por aí afora! Me diga o que o senhor fez para vir aqui!

- Ahhh dotô… cê sabe né! Nois passa apertado da vida… sofrida… de vez em quando tem de dar uma pitadinha da erva!

- Ora! Então o senhor fuma maconha?

- É doutor… nois pita um! Mas é coisa ligeira! Nois num é viciado não! uai… o senhor sabe né!? A gente sofrida tem de ter umas alegriazinhas! Como não tem dinheiro pra viajar de avião, prende uma fumacinha que diverte bastante! Mas empre tenho uma erva comigo.. sabe lá ne?! Se alguém quiser nois vende um pouquinho também! É bão que apura um dinheirinho né! Na revenda!

Tomei o o processo em mãos, olhei pausadamente pensando que a lei de tóxicos aquela época criminalizava o uso de entorpecentes, e desafiei:

- Mas Senhor João, não é bem disso que trata aqui não! O senhor tem feito outras coisas por aí afora! Pode contar! A justiça pode ser cega mas sabe de tudo!

- Iiiiii dotô… intão o senhor me apertou! vô contá! Isturdia uma gracinha de menina muito gostosinha ficou me bulinando! Verdade! Ela ficou me atentando doutor! Eu num queria nada com ela não! Juro por Nossa Senhora! Mas ela era muito bunitinha! Lá no bar do Zeca ela ficava me fitando! Com cara de quem queria da coisa! Quando eu fui seguindo ela na rua ela ficava olhando e dando bola! Ahhhh Sô homi! O trem de querer esquentar e fui nela! Mas acredita que a sirigaita negou fogo! Ahhhh dotô… mulher que oferece tem de dar conta do trato! Passei a mão nela, ela refugando, apertei ela no peito, arrastei para um mato, e fiz a festa. Ela gritou, mas ninguém escutô. Fiz ela muié na marra! Deixei ela lá deitada no mato meio desmaiada e abatida e fui embora!

- O senhor estuprou a garota!

- Uai dotô! ela ficô resfestelando! Dando olhar de querência pra mim! Passei-lhe a….

Interrompi sua fala:

- Opa! Olhe como fala aqui! Mas senhor João – disse eu foleando o processo – não é bem isto que estou querendo saber! O senhor está escondendo algo mais!

- Ai ai ai ai … êta justiça cega que sabe tudo! Tá bão… vô explicá direitim….

Levantou-se bateu com as duas mãos sobre a mesa! um estrondo! Quase caio da cadeira! Mas não vi agressividade contra mim. Somente a revolta contra aquela quem sabe tudo (a justiça)!

- Sabe o Tõe do Zé da Tiana? Intão é ele! Passei a faca nele! Joguei lá no rio, perto da barragem da geradora de luz. Ele tava me devendo, mexeu e desacatou a minha muié. Homi que é homi num deixa barato. Passei a faca nele. Pronto dotô, contei!

Eu branco de susto com estas confissões, dei-me por incompetente (não funcionalmente, mas por falta de sabedoria mesmo!) Chamei o magistrado responsável e o promotor de justiça, para que eles terminassem  aquela audiência que tratava tão somente de uma leve difamação do Sr. João contra um dono de bar contra o qual lançara uma palavra de baixo calão!

Resultado: acharam a moça que admitiu ter sido estuprada e o corpo decomposto do desafeto do Sr. João foi encontrado dias depois. Saí daquela cidade sem saber a pena que lhe fora aplicada. Mas no dia dos fatos não fora preso, somente após depoimento da garota e encontro do corpo. Seu depoimento aquele dia fora tomado extraordinariamente como quem se apresenta espontaneamente  para a confissão de crimes.

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