A Reforma do Código de Processo Civil é um dos temas mais discutidos atualmente no meio jurídico. Mas será que podemos classificá-lo como um novo código de processo, ou ele está mais para uma reforma do atual? Atenderá aos anseios da sociedade por um Judiciário mais rápido e justo? Atenderá ao próprio Judiciário, que se encontra afogado em processos de algumas poucas partes, em especial a Administração Pública, empresas de telefonia, gás, luz, outros serviços públicos e bancos, como mostram recentes pesquisas do CNJ (Os 100 Maiores Litigantes) e da FGV (Supremo em Números)?
Nosso atual Código de Processo Civil, de 1973, é expressamente baseado em teorias e sistemas pensados pelos europeus do início do século passado, como Carnelutti, um dos autores do Código de Processo Civil italiano de 1940. As mesmas ideias, de foco na lide, na disputa, e não no sistema como um todo, já estavam presentes em nosso Código de Processo anterior, de 1939.
Ocorre que nesta época a população do estado de São Paulo era de sete milhões de habitantes. O Rio de Janeiro contava dois milhões. Mais de 70% da população brasileira no início dos anos de 1940 era rural, ou seja, praticamente excluída do sistema judicial. As maiores empresas da época atendiam, no máximo, a alguns milhares de clientes. Poucos contavam com serviços de luz, gás encanado ou mesmo bancários. Telefonia era um luxo caríssimo. Da mesma forma os serviços jurídicos: não havia muitos advogados, e os poucos que existiam cobravam caro. Não existia Código de Defesa do Consumidor.
Na década de 1930 a população brasileira que efetivamente poderia levar alguma questão ao Poder Judiciário — a parcela urbana e alfabetizada — não ultrapassava algumas centenas de milhares, talvez chegasse à casa do milhão. E quando isso ocorria, normalmente, as partes dispunham de armas semelhantes na disputa judicial.
O cenário atual é radicalmente diferente. O estado de São Paulo saltou de seus sete milhões de habitantes para mais de 41 milhões. Quase 500% de crescimento. Efeito semelhante ocorreu no Rio de Janeiro, com sua população pulando de dois para cerca de 16 milhões, um aumento de 700%. Administração Pública e empresas prestadoras de serviços públicos e bancários contam seus clientes ou usuários na casa dos milhões.
Esse novo contexto socioeconômico impôs uma mudança na lógica processual que não foi captada pelo Poder Judiciário ainda. O custo de manutenção de um processo para a Administração Pública e para as empresas de massa tende a cair com o volume — um “fordismo jurídico”. Atualmente, escritórios de advocacia de massa cobram apenas alguns reais por mês por processo quando a quantidade é grande. E essa opção não se encontra disponível para o cidadão comum. Isso gera disparidades de armas.
Já citei anteriormente o exemplo dos mais de oito mil processos no Supremo Tribunal Federal (STF) discutindo cobrança de pulsos telefônicos excedentes. É óbvio que para o cidadão comum levar uma discussão como essa até o Supremo é desvantajoso economicamente, por mais recursos que ele disponha. Mas para uma empresa com dezenas, talvez centenas de milhares de processos, levar esse tipo de processo até último grau tem um custo apenas marginal.
Para a Administração Pública essa conta é ainda mais vantajosa, na medida em que ela não paga por processo. Os procuradores — advogados do Executivo — estarão sempre à disposição, seja para batalhar por um único caso, ou por milhões deles. Além disso, em caso de derrota, normalmente a conta fica para o sucessor. Isso estimula práticas abusivas pelo Executivo, como planos econômicos, confiscos etc., que por sua vez geram mais processos.
Apenas a título de exemplo, recentemente as prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo decidiram tributar ISS retroativamente de algumas categorias. E estão aplicando multas relativas aos últimos cinco anos pelo não pagamento de um tributo que não existia à época em uma clara violação ao mais elementar princípio tributário. Não há dúvidas que as prefeituras serão derrotadas no Judiciário. Mas até lá, elas fazem caixa e deixam a dívida para um futuro prefeito.
Mas deixam também outra dívida, desta vez com o Judiciário. Em reunião recente com desembargadores e juízes do Rio de Janeiro, um dado aproximado me chamou a atenção: mais de 60% dos processos no Judiciário do TJ-RJ são gratuitos. Logo, os outros 40% dos processos têm de cobrir a despesa daqueles. E a absoluta maioria desses 60% de processos gratuitos — Juizados — é contra algumas poucas grandes empresas. A conta dessa litigância de massa fica aberta também para o Judiciário.
O projeto apresentado pelo agora ministro do Supremo, Luiz Fux, ao Congresso traz uma série de inovações. Todo ele é permeado por possibilidades de uso do meio eletrônico, inclusive como forma preferencial para a citação e para a intimação. Ganharam força também a conciliação e a mediação, bem como os processos de massa. O CNJ é citado diversas vezes como órgão regulador, reforçando sua importância institucional. Alguns dos incidentes no meio do processo serão julgados conjuntamente no momento da apelação, reduzindo a quantidade de idas e vindas dos casos para juízes diferentes.
Todas essas mudanças são importantes, sim. Sem dúvida. Entretanto, a atual proposta de reforma ainda é estruturada sobre as ideias italianas do século passado. Outras medidas, talvez mais apropriadas para o contexto brasileiro atual poderiam ser colocadas em discussão para se reduzir esse desequilíbrio entre atores com muitos e atores com poucos processos.
Como escreveu o professor Bresser Pereira em seu recente artigo “O colonialismo cultural”, é chegada a hora de o Brasil desenvolver suas próprias ideias em questões sociais. Processo incluso. Por que não se discutir, por exemplo, uma tabela progressiva de custas processuais, proporcional à quantidade de processos que uma empresa ou que a Administração Pública tenha? Por que não se obrigar que grandes litigantes instaurem cortes de conciliação às suas expensas, supervisionadas pelas agências reguladoras, pelos Procons e pelo próprio Judiciário, com breves prazos para resolução das controvérsias? Por que não, pelo menos, excluir a necessidade de citação e intimação de grandes litigantes, gerando uma enorme economia de cartas com aviso de recebimento, já que estes mantêm equipes de advogados permanentes nos tribunais? Por que não?
Pablo Cerdeira é advogado e professor de Evolução, Aperfeiçoamento e Reforma da Justiça na Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV. Atuou como gestor de projetos como "Justiça sem Papel" e "Prêmio Innovare".
Nenhum comentário:
Postar um comentário