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sábado, 21 de abril de 2012

Trechos do discurso de Ayres Brito no STF

link para ouvir e ler: http://mariadapenhaneles.blogspot.com.br/2012/04/posse-do-novo-presidente-do-stj.html

DELEITEM-SE

Perguntarão os que me ouvem e veem: por que o compromisso de tais agentes do Poder é o de atuar nos marcos da Constituição e das leis, nessa imperiosa sequência? Resposta: porque na primacial observância da Constituição e na complementar obediência às leis do Brasil é que reside a garantia de um desempenho à altura da relevância dos respectivos cargos. É como dizer: basta cumprir fielmente a Constituição e as leis, com as respectivas prioridades temáticas, para se ter a antecipada certeza do êxito de tão honrosas, elementares e complexas investiduras.

 

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É o que sente e pensa o próprio homem comum do povo, segundo pessoalmente comprovei com a vivência deste recente episódio que peço licença para contar: retornava eu de um almoço domingueiro, aqui em Brasília, na companhia da minha mulher e de um dos meus filhos, quando encontrei ao lado do nosso automóvel um homem que aparentava de 30 a 35 anos de idade. Apresentou-se como guardador de carros, mas eu já o conhecia, meio a distância, como morador de rua. Já o vi mais de uma vez, com uma rede estendida sob as árvores, a embalar o abandono dele. E assim me dirigiu a palavra: “ministro Ayres Britto, como o senhor vê, estou aqui tomando conta do seu veículo para que ninguém danifique o patrimônio da sua família”. Eu agradeci àquele homem que me conhecia até pelo nome e procurei nos bolsos algum trocado para recompensá-lo. Em vão. Nenhum dos três membros da família Britto portava dinheiro, nem graúdo nem miúdo. Disse então ao meu educado interlocutor: “como o senhor percebe, desta feita vou ficar lhe devendo”. Ele me fitou diretamente, profundamente, nos olhos e, altivo, respondeu: “ministro, o senhor não me deve nada. O senhor não me deve nada, ministro; basta cumprir a Constituição”.

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Democracia que toma o nome de Federação, quando vista sob o ângulo da divisão espacial do poder político; o nome de República, já sob o prisma da tripartição independente e harmônica dos Poderes estatais. Daí esses dois anéis de Saturno que são a indissolubilidade de laços e a autonomia política, em se tratando do condomínio federativo. Daí os princípios da eletividade dos governantes, da temporariedade dos respectivos mandatos, da responsabilidade jurídica pessoal, individual, de todo e qualquer agente público, do controle externo a que todos eles se submetem, em se tratando de República. Democracia, enfim, repito, que mantém com a “plena liberdade de informação jornalística” uma relação de unha e carne, de olho e pálpebra, de veias e sangue.

 

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A silhueta da verdade só assenta em vestidos transparentes.

 

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Mas há uma diferença, os magistrados não governam. O que eles fazem é evitar o desgoverno, quando para tanto provocados. Não mandam propriamente na massa dos governados e administrados, mas impedem os eventuais desmandos dos que têm esse originário poder. Não controlam permanentemente e com imediatidade a população, mas têm a força de controlar os controladores, em processo aberto para esse fim. Os magistrados não protagonizam relações jurídicas privadas, enquanto magistrados mesmos, porém se disponibilizam para o equacionamento jurisdicional de todas elas. Donde a menção do Poder Judiciário em
terceiro e último lugar (há uma razão lógica e cronológica) no rol dos Poderes estatais (primeiro, o Legislativo, segundo, o Executivo, terceiro, o Judiciário), para facilitar essa compreensão final de que o Poder que evita o desgoverno, o desmando e o descontrole eventual dos outros dois não pode, ele mesmo, se desgovernar, se desmandar, se descontrolar. Mais que impor respeito, o Judiciário tem que se impor ao respeito, me ensinava meu pai, João Fernandes de Britto juiz de direito de carreira do Estado Sergipe e da minha cidade Propriá.

 

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Numa frase, se ao Direito cabe ditar as regras do jogo da vida social, mormente as que mais temerariamente instabilizam a convivência humana (o Direito é o próprio complexo das condições existenciais da sociedade, como ensinava Rudolf Von Ihering), o Poder Judiciário é que detém o monopólio da interpretação e aplicação final do sistema de normas em que esse Direito consiste. É a definitiva âncora de cognição e aplicabilidade vinculativa do Direito, como uma espécie de luz no fim do túnel das nossas mais acirradas e até odientas confrontações (derramamento de bílis não combina com produção de neurônios). É o Poder que não pode jamais perder a confiança da coletividade, sob pena de esgarçar o próprio tecido da coesão nacional.

 

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Todos nós magistrados, quando vamos nos recolher à noite, para o merecido sono, dizemos mentalmente ou inconscientemente, “Senhor, não nos deixeis cair em tanta ação”

 

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Enfim, a Constituição conferiu aos magistrados a missão de guardá-la por cima de pau e pedra, se necessário, por serem eles os seus mais obsessivos militantes (a adjetivação de “obsessivo” é da ilustrada jornalista Dora Kramer). Por isso que eles, os magistrados, fazem do compromisso de posse uma jura de amor. E têm que transformar seus pré-requisitos de investidura – como o notável saber jurídico e a reputação ilibada – em permanentes requisitos de desempenho.

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Poder Legislativo não é obrigado a legislar, mas o Poder Judiciário é obrigado a julgar. Tem que fazê-lo com a observância destes requisitos mínimos:

III - sem confundir jamais o papel de julgador com o de parte processual, pois o fato é que juiz e parte são como água e óleo: não se misturam;

IV – tratando as partes com urbanidade ou consideração, o que implica o descarte da prepotência e da pose. Permito-me a coloquialidade da vez: “Quem tem o rei na barriga um dia morre de parto”.

Juiz não é traça de
processo, não é ácaro de gabinete, e por isso, sem fugir das provas dos autos nem se tornar refém da opinião pública, tem que levar os pertinentes dispositivos jurídicos ao cumprimento de sua, pouco percebida, mediata ou macro-função de conciliar o Direito com a vida. Não apenas de sua imediata ou micro-função de equacionar conflitos entre partes nominalmente identificáveis, exigindo-se-lhe, no entanto, fundamentação rigorosamente científica;

E nós sabemos que há pessoas que experimentam imensa dificuldade para enterrar ideias mortasSe tudo é incerto, é porque é certo mesmo que tudo seja incerto. Se tudo é teluricamente inseguro, que nos sintamos seguros na telúrica insegurança das coisas. É o nosso lado emocional, feminino, artístico, amoroso, sensitivo, corajoso, por saber que quem não solta as amarras desse navio de nome coração corre o risco de ficar à deriva é no próprio cais do porto. Que é a pior forma de ficar à deriva.

…não sendo por acaso que o Direito seja uma palavra masculina, enquanto a justiça, uma palavra feminina. Também não sendo por coincidência que o substantivo sentença venha do verbo sentir, na linha do que falou esse gênio da raça que foi o sergipano Tobias Barreto: “Direito não é só uma coisa que se sabe, mas também uma coisa que se sente”. Precedido por Platão (...) e seguido por Max Scheler, numa linha mais filosófica e holista, a saber: Platão (427/347 a.C.) - “Quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia”; Sheler – “O ser humano, antes de ser um ser um ser pensante ou volitivo, é um ser amante”;

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